quarta-feira, 25 de março de 2015

PORQUE É QUE OS LEOPARDOS TÊM PINTAS

O Leopardo era muito amigo do Fogo visitando-o todos os dias, embora este nunca fosse a sua casa. Estas visitas sucederam-se durante tanto tempo, que a mulher do Leopardo zangando-se com o marido, disse-lhe que o amigo nunca retribuía as visitas porque sabia que eles eram pobres e portanto não lhe interessava ir a casa deles. E de cada vez que o marido saía de casa, ela dizia-lhe sempre a mesma coisa. Isto sucedeu-se também tantas vezes, que o pobre do Leopardo, já cansado das discussões com a mulher, pediu ao Fogo que lhe retribuísse a visita. Ao princípio, o Fogo tentou escusar-se, dizendo que nunca ia a casa de ninguém porque não podia andar. Mas quando o amigo lhe perguntou se era porque eles eram pobres e lhe contou as discussões que, por causa disso, tinha com a mulher, insistindo muito na visita, o Fogo acabou por concordar, com uma condição: para ele poder chegar a casa do Leopardo, era necessário haver uma estrada de folhas secas que fosse desde a sua casa até à do amigo. Muito contente, o Leopardo contou depois a conversa à mulher, que logo se pôs a apanhar folhas secas para fazerem o caminho. Quando a passagem ficou terminada, o Leopardo combinou com o amigo a visita à sua casa no dia seguinte. Estavam marido e mulher à espera do visitante quando sentiram um vento forte acompanhado de um ruído de coisas a estalar no exterior. Correram a ver o que se passava e viram o Fogo à sua porta. Este estendeu os dedos em chamas para cumprimentar o Leopardo, mas este e a mulher conseguiram fugir saltando por uma janela. A casa ficou toda queimada e desde então, os Leopardos têm manchas pretas como lembrança dos sítios onde os dedos do Fogo tocaram no seu antepassado, fugindo assim que o sentem ao longe.
Conto Africano

domingo, 15 de março de 2015

O SAL E A ÁGUA

O SAL E A ÁGUA

Um rei tinha três filhas. Perguntou a cada uma delas por sua vez, qual era a mais sua amiga? A mais velha respondeu:
- Quero mais a meu pai do que à luz do Sol.
Respondeu a do meio:
- Gosto mais de meu pai do que de mim mesma.
A mais moça respondeu:
- Quero-lhe tanto, como a comida quer o sal.
O rei entendeu por isto que a filha mais nova o não amava tanto como as outras, e pô-la fora do palácio. Ela foi muito triste por esse mundo, e chegou ao palácio de um rei, e aí se ofereceu para ser cozinheira. Um dia veio à mesa um pastel bem feito, e o rei ao parti-lo achou dentro um anel muito pequeno, e de grande preço. Perguntou a todas as damas da corte de quem seria o anel. Todas quiseram ver se o anel lhes servia: foi passando, até que foi chamada a cozinheira e só a ela é que o anel servia. O príncipe viu isto e ficou logo apaixonado por ela, pensando que era de família nobreza.
Começou então a espreitá-la porque ela só trabalhava às escondidas, e viu-a vestida com trajos de princesa. Foi chamar o rei seu pai e ambos viram o caso. O rei deu licença ao filho para casar com ela, mas a menina tirou por condição que queria cozinhar pela sua mão o jantar do dia da boda. Para as festas do noivado convidou-se o rei que tinha três filhas, e que pusera fora de casa a mais nova. A princesa cozinhou o jantar, mas nos manjares que haviam de ser postos ao rei seu pai não botou sal de propósito. Todos comiam com vontade, mas só o rei convidado é que nada comia. Por fim perguntou-lhe o dono da casa, porque é que o rei não comia? Respondeu ele, não sabendo que assistia ao casamento da filha:
- É porque a comida não tem sal.
O pai do noivo fingiu-se raivoso, e mandou que a cozinheira viesse ali dizer porque é que não tinha botado sal na comida. Veio então a menina vestida de princesa, mas assim que o pai a viu, conheceu-a logo, e confessou ali a sua culpa, por não ter percebido quanto era amado por sua filha, que lhe tinha dito que lhe queria tanto como a comida quer o sal, e que depois de sofrer tanto nunca se queixara da injustiça de seu pai.

Teófilo Braga, in Contos Tradicionais Portugueses
(Porto)

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

HISTÓRIA DA CAROCHINHA

HISTORIA DA CAROCHINHA

Era de uma vez uma carochinha que andava a varrer a casa e achou cinco réis e foi logo ter com uma vizinha e perguntou-lhe: «Oh vizinha, que hei de eu fazer a estes cinco réis?» Respondeu-lhe a vizinha: «Compra doces.» — «Nada, nada, que é lambarice. «Foi ter com outra vizinha e ela disse-lhe o mesmo; depois foi ainda ter com outra que lhe disse: «Compra fitas, flores, braceletes e brincos e vai-te pôr à janela e diz:

"Quem quer casar com a carochinha
Que é bonita e perfeitinha?"

Foi a carochinha comprar muitas fitas, rendas, flores, braceletes de ouro e brincos; enfeitou-se muito enfeitada e foi-se pôr à janela, dizendo:

«Quem quer casar com a carochinha
Que é bonita e perfeitinha?»

Passou um boi e disse: «Quero eu.» «Como é a tua fala?» «Ú, ú…» «Nada, nada não me serves que me acordas os meninos de noite.» Depois tornou outra vez a dizer:

«Quem quer casar com a carochinha
Que é bonita e perfeitinha?»

Passou um burro e disse: «Quero eu.» «Como é a «tua fala?» «Em ó… em ó…» «Nada, nada não me serves, que me acordas os meninos de noite.» Depois passou um porco e a carochinha disse-lhe: «Deixa-me ouvir a tua fala.» «On, on, on.» «Nada, nada não me serves, que me acordas os meninos de noite.» Passou um cão e a carochinha disse-lhe: «Deixa-me ouvir a tua fala.» «Béu, béu.» «Nada, nada não me serves, que me acordas os meninos de noite.» «Passou um gato. «Como é a tua falla?» «Miau, miau.» Nada, nada, não me serves, que me acordas os meninos de noite.» Passou um ratinho e disse: «Quero eu.» «Como é a tua fala?» «Chi, chi, chi.» «Tu sim, tu sim; quero casar contigo,» disse a carochinha. Então o ratinho casou com a carochinha e ficou-se chamando o João Ratão. Viveram alguns dias muito felizes, mas tendo chegado o domingo, a carochinha disse ao João Ratão que ficasse ele a tomar conta na panela que estava ao lume a cozer uns feijões para o jantar. O João Ratão foi para junto do lume e para ver se os feijões já estavam cozidos meteu a mão na panela e a mão ficou-lhe lá; meteu a outra; também la ficou; meteu-lhe um pé; sucedeu-lhe o mesmo, e assim em seguida foi caindo todo na panela e cozeu-se com os feijões. Voltou a carochinha da missa e como não visse o João Ratão, procurou-o por todos os buracos e não o encontrou e disse para consigo. «Ele virá quando quiser e deixa-me ir comer os meus feijões.» Mas ao deitar os feijões no prato encontrou o João Ratão morto e cozido com eles. Então a carochinha começou a chorar em altos gritos e uma tripeça que ella tinha em casa perguntou-lhe:
«Que tens, carochinha,
Que estás aí a chorar?»
«Morreu o João Ratão
E por isso estou a chorar»
«E eu que sou tripeça
Ponho-me a dançar.»

Diz dali uma porta:
«Que tens tu, tripeça,
Que estás a dançar?»
«Morreu o João Ratão,
Carocinha está a chorar,
E eu que sou tripeça
Puz-me a dançar.»
«E eu que sou porta
Ponho-me a abrir e a fechar.»

Diz dali uma trave:
«Que tens tu, porta,
Que estás a abrir e a fechar?
«Morreu o João Ratão,
Carochinha está a chorar,
A tripeça está a dançar,
E eu que sou porta
Puz-me a abrir e a fechar.»
«E eu que sou trave
Quebro-me.»

Diz d’ali um pinheiro:
«Que tens, trave,
Que te quebraste?»
«Morreu o João Ratão,
Carochinha está a chorar,
A tripeça está a dançar,
A porta a abrir e a fechar,
E eu quebrei-me.»
«E eu que sou pinheiro
Arranco-me.»

Vieram os passarinhos para descansar no pinheiro e viram-no arrancado e disseram:
«Que tens, pinheiro,
Que estás no chão?»
«Morreu o João Ratão,
Carochinha está a chorar,
A tripeça está a dançar,
A porta a abrir e a fechar,
A trave quebrou-se,
E eu arranquei-me.»
«E nós que somos passarinhos
Vamos tirar os nossos olhinhos.

Os passarinhos tiraram os olhinhos, e depois foram à fonte beber agua. E diz-lhe a fonte:
«Porque foi passarinhos,
Que tirastes os olhinhos?»
«Morreu o João Ratão,
A carochinha está a chorar,
A tripeça está a dançar,
A porta a abrir e a fechar,
A trave quebrou-se,
O pinheiro arrancou-se,
E nós, passarinhos,
Tirámos os olhinhos»
«E eu que sou fonte
Seco-me.»

Vieram os meninos do rei com os seus cantarinhos para levarem agua da fonte e acharam-na seca e disseram:
«Que tens, fonte,
Que secaste?
«Morreu o João Ratão,
A carochinha está a chorar,
A tripeça a dançar,
A porta a abrir e a fechar,
A trave quebrou-se,
O pinheiro arrancou-se,
Os passarinhos tiraram os olhinhos,
E eu sequei-me.»
«E nós quebramos os cantarinhos.»

Foram os meninos para palácio e a rainha perguntou-lhe:
«Que tendes, meninos,
Que quebrastes os cantarinhos?»
«Morreu o João Ratão,
A carochinha está a chorar,
A tripeça a dançar,
A porta a abrir e a fechar,
A trave quebrou-se,
O pinheiro arrancou-se,
Os passarinhos tiraram os olhinhos,
A fonte secou-se,
E nós quebrámos os cantarinhos.»
«Pois eu que sou rainha
Andarei em fralda pela cozinha.»
Diz dali o rei:
«E eu vou arrastar o c…
Pelas brasas.»


Adolfo Coelho, Contos Populares Portugueses
(Coimbra.)

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

PEDRO DE MALAS-ARTES


PEDRO DE MALAS-ARTES
Uma pobre mulher tinha um filho, que era assim atolado, e porque nunca fazia nem dizia nada acertado, chamavam-lhe o Pedro das Malas-Artes. A mulher não tinha senão aquele filho, e por isso estimava-o. Um dia trouxe a mulher para casa uma teiaa de linho, que tinha deitado, e disse:
— Este pano é para nós taparmos os nossos buraquinhos.
Assim que a mulher saiu, e se demorou na missa, o filho foi á teiaa de linho, cortou-a em bocadinhos e começou a metê-los pelos buracos das paredes do casebre. Quando a mãe chegou, ele disse-lhe muito contente:
— Mãe, olhe como estão tapados os nossos buraquinhos.
A mãe conheceu a tolice, lamentou os seus pecados, e fê-lo prometer que nunca mais tornaria. No dia seguinte disse ao filho que fosse à feira comprar um bácoro e o trouxesse para casa. Esperou, esperou, e como o filho não acabava de vir, foi a ver se o encontrava; achou-o caído no chão com o porco em cima de si, porque tinha entendido que o havia de trazer ás costas, e ele era bastante pesado. A mulher chorou, afligiu-se, e explicou:
— Isto traz-se para casa, com um cordelzinho amarrado pelo pé, e toca-se para diante com uma varinha.
Pedro de Malas-Artes ouviu aquilo para seu governo; passados dias a mãe mandou-o que fosse à feira comprar um cântaro. Quando ele chegou a casa, trazia só a asa.
— Que é isto, Pedro? Onde está o cântaro que te mandei buscar.
Disse ele à mãe:
— Amarrei-lhe um cordelzinho pela asa, e toquei-o para diante com uma varinha; fiz como minha mãe me disse no outro dia.
A mãe tornou a lamentar-se, e disse-lhe:
— Se tu tivesses juízo trazias o cântaro na mão, ou então entre palha, nalgum carro que viesse para as nossas bandas.
Vai nisto mandou-o a uma loja comprar um vintém de agulhas; Pedro de Malas-Artes trouxe as agulhas, e como ia passando um carro de palha aproveitou a ocasião e despejou as agulhas entre a palha. Chega a casa, e pergunta-lhe a mãe pelas agulhas:
— Vem aí no carro da palha do nosso vizinho; botei-as lá, como minha mãe me disse no outro dia.
A mãe já estava cansada de tanta tolice, e já tinha medo de o mandar a algum recado. Um dia comprou tripas para guisar para o jantar e disse a Pedro de Malas-Artes:
— Vai ali à beira do rio lavar essas tripas, e não mas tragas cá sem que estejam bem limpas.
— Mas eu como é que hei-de saber que as tripas estão limpas?
— Pergunta a alguém, que te diga.
Foi Pedro de Malas-Artes lavar as tripas; lavou, tornou a lavar, e como não passava ninguém, lavava que lavava. Até que lá ao longe viu vir um barco à vela e a remar, porque havia calmaria, e pôs-se a acenar e a chamar. A gente do barco pensando gue era algum passageiro abicou á praia, lutando contra a corrente, quando Pedro de Malas-Artes perguntou:
— Olhem lá; os senhores dizem-me se estas tripas já estão bem lavadas?
A gente do barco ficou desesperada, saltaram em terra, deram-lhe muita pancada e disseram por fim:
— O que tu deves dizer, é que sopre muito vento.
Foram-se embora. Pedro de Malas-Artes ia para casa, e aconteceu passar por um campo onde se andava ceifando trigo e armando as paveias, e começou a dizer:
— O que é preciso é que sopre muito vento; que sopre muito vento.
A gente que andava ceifando ficou desesperada, e vieram bater-lhe, dizendo:
— Oh estuporado, não sabes que o muito vento nos espalhava o trigo todo? O que é preciso é que não caia nenhum.
E deixaram-no ir embora. Foi-se Pedro e passou por um campo onde estavam uns homens armando uma rede para apanhar pássaros, e começou a dizer:
— O que é preciso é que não caia nenhum, que não caia nenhum.
Vem os homens da rede, bateram-lhe muitas, e clamaram:
— O que tu deves dizer, é que assim haja muito sangue.
Passa Pedro por um caminho onde estavam dois homens engalfinhados brigando, e outros também querendo apará-los, e entra a dizer em altos gritos:
— Assim haja muito sangue, assim haja muito sangue.
Já se sabe, vieram ter com ele e deram-lhe muitas pancadas, e disseram-lhe:
— O que tu deves dizer é que Deus os desaparte, Deus os desaparte.
Vai-se Pedro de Malas-Artes por ali adiante, quando vinha um grande acompanhamento com um noivo e noiva que acabavam de se casar. Começa ele:
— Assim Deus os desaparte, assim Deus os desaparte.
Os convidados deram-lhe muita pancada e disseram:
— Oh homem, o que tu deves dizer é que destes cada dia um.
Indo mais para diante encontra um enterro de um homem muito estimado na terra, e entra a bradar:
— Destes cada dia um, cada dia um.
A gente que seguia o enterro não teve mão que lhe não batesse muita pancada, e disseram-lhe:
— O que você deve dizer é que Nosso Senhor o leve direitinho para o céu.
Vai mais para diante, e vinha passando um baptizado, e começa Pedro de Malas-Artes:
— Nosso senhor o leve direitinho para o céu.
Os padrinhos da criança tomaram aquilo por mau agoiro, e desancaram Pedro de Malas-Artes, que botou a fugir e se não chegasse a casa ainda andava a levar pancadas por esse mundo.

Teófilo Braga, Contos Tradicionais do Povo Português, 1883



quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

DOM CAIO

DOM CAIO

Era um alfaiate muito poltrão, que estava trabalhando à porta da rua; como ele tinha medo de tudo, o seu gosto era fingir de valente. Vai de uma vez viu muitas moscas juntas e de uma pancada matou sete. Daqui em diante não fazia senão gabar-se:
— Eu cá mato sete de uma vez!
Ora o rei andava muito aparvalhado, porque lhe tinha morrido na guerra o seu general Dom Caio, que era o maior valente que havia, e as tropas do inimigo já vinham contra ele, porque sabiam que não tinha quem mandasse a combatê-las. Os que ouviram o alfaiate andar a dizer por toda a parte: «Eu cá mato sete de uma vez!» foram logo metê-lo no bico ao rei, que se lembrou de que quem era assim tão valente seria capaz de ocupar o posto de Dom Caio. Veio o alfaiate à presença do rei, que lhe perguntou:
— É verdade que matas sete de uma vez?
— Saberá Vossa Majestade que sim.
— Então nesse caso vás comandar as minhas tropas, e atacar os inimigos que já me estão cercando.
Mandou vir o fardamento de Dom Caio e fê-lo vestir ao alfaiate, que era m
uito baixinho, e que ficou com o chapéu de bicos enterrado até às orelhas; depois disse que trouxessem o cavalo branco de Dom Caio para o alfaiate montar. Ajudaram-no a subir para o cavalo, e ele já estava a tremer como varas verdes; assim que o cavalo sentiu as esporas botou à desfilada, e o alfaiate a gritar:
— Eu caio, eu caio!
Todos os que o ouviam por onde ele passava, diziam:
— Ele agora diz que é o Dom Caio; já temos homem.
O cavalo que andava costumado às escaramuças, correu para o sítio em que andava a guerreia, e o alfaiate com medo de chir ia agarrado ás clinas, a gritar como desesperado:
— Eu caio, eu caio!
O inimigo assim que viu vir o cavallo branco do general valente, e ouviu o grito: «Eu caio, eu caio!» conheceu o perigo em que estava e disseram os soldados uns para os outros:
— Estamos perdidos, que lá vem o Dom Caio; lá vem o Dom Caio.
E botaram a fugir em debandada; os soldados do rei foram-lhe no encalço e mataram neles, e o alfaiate ganhou assim a batalha só em agarrar-se ao pescoço do cavalo e em gritar: «Eu caio.» O rei ficou muito contente com ele, e em paga da vitória deu-lhe a princesa em casamento, e ninguem fazia senão louvar o sucessor de Dom Caio pela sua coragem.


Teófilo de Braga, Contos Tradicionais do Povo Português, 1883




OS DEZ ANÕEZINHOS DA TIA VERDE-ÁGUA


OS DEZ ANÕEZINHOS DA TIA VERDE-ÁGUA

Era uma mulher casada, mas que se dava muito mal com o marido, porque não trabalhava nem tinha ordem no governo da casa; começava uma coisa e logo passava para outra, tudo ficava em meio, de sorte que quando o marido vinha para casa nem tinha o jantar feito, e à  noite nem água para os pés, nem a cama arranjada. As coisas foram assim, até que o homem lhe pôs as mãos e ia-a tosando, e ela a passar muito má vida. A mulher andava triste por o homem lhe bater, e tinha uma vizinha a quem se foi queixar, a qual era velha e se dizia que as fadas a ajudavam. Chamavam-lhe a Tia Verde-Água:

– Ai, Tia! vocemecê é que me podia valer nesta aflição.


– Pois sim, filha; eu tenho dez anõezinhos muito arranjadores, e mando-tos para tua casa para  te ajudarem.

E a velha começou a explicar-lhe o que devia fazer para que os dez anõezinhos a ajudassem; que quando pela manhã se levantasse fizesse logo a cama, em seguida acendesse o lume, depois enchesse o cântaro de água, varresse a casa, aponteasse a roupa, e no intervalo em que cozinhasse o janta,r fosse dobando as suas meadas, até o marido chegar. Foi-lhe assim indicando o que havia de fazer, que em tudo isto seria ajudada sem ela o sentir pelos dez anõezinhos. A mulher assim o fez, e se bem o fez melhor lhe saiu. Logo à boca da noite foi a casa da Tia Verde-Água agradecer-lhe o ter-lhe mandado os dez anõezinhos, que ela não viu nem sentiu, mas porque o trabalho correu-lhe como por encanto. Foram-se assim passando as coisas, e o marido estava pasmado por ver a mulher tornar-se tão arranjadeira e limposa; ao  fim de oito dias ele não se teve que não lhe dissesse como ela estava outra mulher, e que assim viveriam como Deus com os anjos. A mulher contente por se ver agora feliz, e mesmo porque a féria chegava para mais, vai a casa da Tia Verde-Água agradecer-lhe o favor que lhe  fez:

– Ai, minha Tia, os seus dez anõezinhos fizeram-me um servição; trago agora tudo arranjado, e  o meu homem anda muito meu amigo. O que lhe eu pedia agora é que mos deixasse lá ficar.

A velha respondeu-lhe:

– Deixo, deixo. Pois tu ainda não viste os dez anõezinhos?

– Ainda não; o que eu queria era vê-los.

– Não sejas tola; se tu queres vê-los olha para as tuas mãos, e os teus dedos é que são os dez  anõezinhos.

A mulher compreendeu a causa, e foi para casa satisfeita consigo por saber como é que se faz  luzir o trabalho.

Teófilo Braga, Contos Tradicionais do Povo Portugês, 1883







segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

O SAL E A ÁGUA


O SAL E A ÁGUA 

 Um rei tinha três filhas; perguntou a cada uma delas por sua vez, qual era a mais sua amiga.
A mais velha respondeu:
 – Quero mais a meu pai, do que à luz do Sol.
Respondeu a do meio:
 – Gosto mais de meu pai do que de mim mesma.
 A mais moça respondeu:
 – Quero-lhe tanto, como a comida quer o sal.
 O rei entendeu por isto que a filha mais nova o não amava tanto como as outras, e pô-la fora do palácio. Ela foi muito triste por esse mundo, e chegou ao palácio de um rei, e aí se ofereceu para ser cozinheira. Um dia veio à mesa um pastel muito bem feito, e o rei ao parti-lo achou dentro um anel muito pequeno, e de grande preço. Perguntou a todas as damas da corte de quem seria aquele anel. Todas quiseram ver se o anel lhes servia: foi passando, até que foi chamada a cozinheira, e só a ela é que o anel servia. O príncipe viu isto e ficou logo apaixonado por ela, pensando que era de família de nobreza. Começou então a espreitá-la, porque ela só cozinhava às escondidas, e viu-a vestida com trajos de princesa. Foi chamar o rei seu pai e ambos viram o caso. O rei deu licença ao filho para casar com ela, mas a menina tirou por condição que queria cozinhar pela sua mão o jantar do dia da boda. Para as festas de noivado convidou-se o rei que tinha três filhas, e que pusera fora de casa a mais nova. A princesa cozinhou o jantar, mas nos manjares que haviam de ser postos ao rei seu pai não botou sal de propósito. Todos comiam com vontade, mas só o rei convidado é que não comia. Por fim perguntou-lhe o dono da casa, porque é que o rei não comia? Respondeu ele, não sabendo que assistia ao casamento da filha:
 – É porque a comida não tem sal.
O pai do noivo fingiu-se raivoso, e mandou que a cozinheira viesse ali dizer porque é que não tinha botado sal na comida. Veio então a menina vestida de princesa, mas assim que o pai a viu, conheceu-a logo, e confessou ali a sua culpa, por não ter percebido quanto era amado por sua filha, que lhe tinha dito, que lhe queria tanto como a comida quer o sal, e que depois de sofrer tanto nunca se queixara da injustiça de seu pai.

Teófilo Braga, Contos Tradicionais do Povo Português, 1883